A movimentação política recente no Brasil, principalmente a ocorrida nas últimas semanas, deixa clara para qualquer jogador inveterado de baralho o que ocorre em Brasília: uma partida de truco, com seus blefes e apostas.
O veterano político Valdemar Costa Neto, presidente do Partido Liberal, legenda do presidente Jair Messias Bolsonaro, apresentou na terça-feira passada (22) um pedido de verificação extraordinária do resultado do segundo turno das eleições, com base em um relatório elaborado por uma consultoria privada, que alega que as urnas anteriores ao modelo 2020 (60% do total, mais de 250 mil aparelhos) deveriam ser descartadas.
A alegação vem do fato das urnas possuírem um número de série único, quando, na opinião da consultoria (e não do partido, como Valdemar faz questão de deixar claro), deveriam apresentar um número individualizado, porque somente assim seria possível fazer uma auditagem.
Mas todas as entidades fiscalizadoras atestam que a ausência desse número de série não significa que os resultados estejam comprometidos ou que não seja possível associar os boletins a cada urna, uma vez que esse número não é a única forma de identificação, nem o que confere autenticidade à urna.
Cada urna eletrônica, mesmo as dos modelos mais antigos, possui um certificado digital único. Esse certificado não se repete e é usado para assinar digitalmente os arquivos de cada urna. Isso permite a verificação individual dos equipamentos e do sistema que é rodado nas urnas.
Como qualquer pessoa que já tenha trabalhado de mesário sabe, cada urna emite um boletim ao final da eleição (que pode ser impresso quantas vezes for necessário) e, cada boletim, possui o código de cada urna nele.
E o presidente do Partido Liberal sabe disso, como sempre soube. O cacique político foi eleito seis vezes como deputado federal por São Paulo, três das quais com urna eletrônica. Valdemar, como qualquer político de carreira em Brasília, sabe muito bem da eficiência e transparência do aparelho, caso contrário, já a teriam contestado 20 anos atrás.
Mas Valdemar, ciente das ilusões fomentadas e nutridas pelo atual presidente a seus seguidores, decidiu contestar o processo como maneira de manter essa grandiosa vantagem política (Bolsonaro e seus seguidores) para sua legenda, no mais conhecido estilo ‘vai que cola’.
Ou seja, Valdemar gritou ‘truco!’ para Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), principal responsável pela condução das eleições de 2022, mesmo sem ter nada na mão.
Moraes, porém, chamou ‘seis’. Se as urnas eletrônicas possuem problemas que afetam o resultado da eleição presidencial no segundo turno, argumenta Moraes (e qualquer pessoa que entenda o mínimo do processo), também deve ser questionado o resultado no primeiro turno, afinal de contas, ambos turnos utilizaram as mesmas máquinas supostamente problemáticas.
Mais ainda, lembra Moraes, mesmo que o primeiro turno não fosse um problema e abordassem somente o segundo turno, por que o problema se apresentaria somente na eleição presidencial? Pela lógica, se a urna é um problema para o segundo turno, também devem ser contestadas as eleições para governador, não é mesmo?
Mas isto não seria nem um pouco interessante pela ótica do Partido Liberal. Como contestar as eleições do primeiro turno, nas quais o PL elegeu 99 deputados federais, a maior bancada da Câmara? A sigla elegeu apenas 33 deputados na eleição de 2018. Alguém colocaria em xeque a eleição que triplicou seus parlamentares federais? Isso sem contar os 129 deputados estaduais eleitos, o maior dentre todos os partidos. Valeria a pena, para Valdemar e para o PL, arriscar tudo isso por Bolsonaro?
E mesmo contestar o segundo turno como um todo seria pouco vantajoso: dentre os 12 governadores eleitos na segunda parte do pleito, está Jorginho Mello, que disputou o Governo do Estado de Santa Catarina com o PT. Ao lado de Cláudio Castro, reeleito para governar o Estado do Rio de Janeiro, são os únicos governadores eleitos pelo PL. Valeria o risco?
Aparentemente, não muito, já que Valdemar respondeu com um ‘nove’ bem murcho e sem segurança. Ele insistiu em dizer que há problemas no segundo turno e que sua contestação não abrangeria o primeiro para ‘evitar transtornos institucionais’, já que, segundo o próprio, seria uma ‘loucura’ questionar o primeiro turno. Ao ser questionado sobre o certificado digital único de cada urna, Valdemar não respondeu, nem o advogado da sigla, Marcelo Bessa.
Diante dessas justificativas fracas e mal fundamentadas, Alexandre de Moraes não só chamou ‘doze’ como mostrou o ‘zap’: aplicou multa de R$ 22,9 milhões à coligação por litigância de má fé, ou seja, acionaram a justiça de forma irresponsável.
E os bolsonaristas, veja só, acharam que a cifra de 22 milhões foi proposital. Porém a multa foi definida como 2% do valor das urnas contestadas, ou seja, 2% do valor que o erário perderia ao descartar as urnas que o PL pedia que fossem invalidadas. O PL pediu a invalidação de 279.383 aparelhos, cada um no valor de R$ 4.114,70 cada. Multas do tipo giram entre 1% e 10% do valor, portanto todos os especialistas da área indicam que a multa não é abusiva (inclusive, poderia ser mais severa).
E detalhe: a multa, originalmente, não foi para o partido, foi para a coligação, que é composta por PL, Progressistas (PP) e Republicanos. E, com bons partidos de direita fisiológica que são, já negaram envolvimento com a demanda tresloucada: ambos partidos entraram com ação contra a multa alegando que, não só discordavam do pedido de Valdemar, como aceitaram publicamente o resultado do segundo turno, reforçando que não foram consultados pelo PL antes de entrar com a ação em nome da coligação. O TSE aceitou o pedido, deixando a multa somente para o PL que, com esta ação, fica cada vez mais isolado.
E, assim, tem início outro jogo para Valdemar: o futuro do partido. O Partido Liberal tem dois caminhos bem distintos à sua frente: passar os próximos quatro anos como um partido de forte oposição ao Partido dos Trabalhadores (PT), contestando cada ação de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência, e batendo de frente tendo em vistas uma eventual disputa no pleito presidencial de 2026; ou passar os próximos anos como uma partido de oposição leve, tipicamente de direita fisiológica, que faz o que faz para sobreviver eleitoral e politicamente e não por ideologia, bem anexado ao ‘centrão’.
A segunda opção é muito mais orgânica ao PL, e casa muito mais com sua natureza nas últimas três décadas, porém não é o esperado pelos apoiadores mais ferrenhos de Bolsonaro, que desejam nada menor do que uma ferrenha oposição a Lula.
Mas esta decisão de Valdemar depende de um fator: o próprio Bolsonaro. Caso Jair se posicione como um líder forte e ativo dentro do partido, a sigla pode aderir à primeira opção e passar o próximo quadriênio batendo de frente com o governo petista. Caso o atual presidente passe os próximos quatro anos apresentando o mesmo desânimo e apatia que apresentou desde a eleição de seu adversário, não haverá maneira de Valdemar escolher a primeira opção. E, escolhendo a segunda opção, vem algo que Valdemar não deseja: limar o partido dos radicais bolsonaristas, que já causam problema. Além de energizar a base, a outra função de Bolsonaro é botar freio nos expoentes mais radicais e tresloucados do partido. Porém, sem o capitão para impor limites nestes radicais, Valdemar não terá escolha a não ser correr com eles da sigla.
E, em meio à partida de truco do PL e TSE, ocorrem as manifestações, que cada vez perdem mais força, sobretudo com a Copa do Mundo: não só o foco da população mudou de eleição para futebol (a ponto dos manifestantes começarem a trocar a camiseta canarinha por camisetas pretas para não serem ‘confundidos’ com torcedores da Seleção Brasileira), como o flagra do filho do presidente no Catar foi um golpe duro no movimento antidemocrático.
Eduardo Bolsonaro foi aos Estados Unidos se encontrar com o ex-presidente Donald Trump e com o estrategista Steve Bannon, que tem dado pitacos para partidos de extrema direita em eleições no mundo. Esta viagem foi amplamente documentada pelo filho 03 do presidente em suas redes sociais e nas da esposa.
Porém a viagem ao Catar não constou em nenhuma postagem do deputado. O casal foi flagrado pelas câmeras em transmissão oficial da Copa do Mundo (não podem nem acusar a Rede Globo; a filmagem é feita pela organização da Copa e retransmitidas às emissoras de cada país; ou seja, o operador da câmera nem sabia que estava filmando um deputado filho de presidente) e pegou de surpresa os manifestantes brasileiros.
Hoje, muitos se questionam se vale a pena acampar na frente de quartéis em nome de alguém que está em silêncio há quase um mês, e atender o clamor de um deputado que, na primeira oportunidade, voa ao outro lado do mundo para curtir o mesmo evento esportivo que eles juraram não assistir.
Em resumo: os bolsonaristas continuam pedindo truco, mesmo com todo mundo tendo as cartas sobre a mesa. Não entenderam que, para blefar, o adversário não pode saber que você está com uma mão ruim. E a mão do PL e de Bolsonaro está péssima. E cada vez pior (por mérito próprio).
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