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Renascimento

- 11 de julho de 2020
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Fome no campo. Caos nas cidades. Medo por toda parte. As pessoas largavam os cadáveres dos seus entes queridos na rua para que o carroceiro viesse os recolher e lançar na fogueira. Mas isso poderia levar horas, dias até, e a família tinha que assistir pelas frestas da janela o corpo de um pai, uma mãe, um filho, decompondo-se ante a soleira de sua porta e servindo de repasto para aves carniceiras e cães de rua.

A cena acima parece ter sido retirada de um filme de terror apelativo, mas é uma descrição precisa de acontecimentos muito reais. Em meados do século 14, a Europa foi vítima de uma das mais letais pandemias da história, a Peste Negra. As cidades grandes foram devastadas e mesmo as regiões rurais mais remotas não ficaram livres do contágio. A taxa de mortalidade era muito maior do que a capacidade de sepultar os mortos, até por que os coveiros, que ficavam em contato direto com os infectados, estavam entre as primeiras vítimas. Os corpos formavam pilhas nas ruas e praças. A Peste Negra ceifou quase dois terços da população européia da época.

Pestes, epidemias, pandemias e toda a desolação que trazem consigo não são eventos novos na história do mundo. Faz parte do fato bruto da existência. Coisas ruins acontecem. Após a Peste a Europa ingressou numas das fases mais pujantes de desenvolvimento econômico, artístico, cultural e científico da história ocidental. Foi o tal do Renascimento que você, leitor, certamente ouviu falar enquanto estava na escola. A catástrofe sacudiu as estruturas daquela civilização. Colocou suas vidas de cabeça para baixo, mudou seus costumes, fez as pessoas questionarem suas crenças e valores mais arraigados e repensar suas formas de organização política. Como resultado, acabaram rompendo com a estagnação medieval e lançando as bases do mundo moderno no qual hoje vivemos.

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Com esse exemplo histórico não estou te convidando a procurar o lado bom da pandemia atual. Pois ele não existe. Uma pessoa que afirme que a pandemia pode ser uma “oportunidade enviada pelo universo” ou que aponte qualquer aspecto positivo num flagelo que, só no Brasil, já provocou a morte de mais de 70 mil pessoas, fez milhares perderem seus empregos, colocou centenas em situação de insegurança alimentar e terminou de minar as frágeis bases da política e economia nacional é alguém, no mínimo, alienado e insensível. Então, como lidar com situações assim? 

A pandemia, como a própria etimologia da palavra já expressa, não deixou ninguém ileso. Para alguns, provocou algumas rachaduras no modo de vida anterior, para outros talvez tenha reduzido a escombros todo um projeto de carreira, de negócio, de família. Não acredito em listas com “10 regras fáceis para o sucesso” ou “curso de imersão para transformar sua vida” (isso tem o cheiro indisfarçável de charlatanismo). Superar as experiências traumáticas continua sendo um desafio que requer uma boa dose paciência, considerável quantia de tempo e disposição para se submeter à uma autoavaliação crítica (o que, via de regra, é uma operação dolorosa). Você, eu, todos nós perdemos algumas coisas nessa confusão. Dinheiro, trabalho, viagens, planos e, provavelmente, um pouco da sanidade mental (sem esquecer de mencionar aquelas que perderam entes queridos ou a própria vida). 

E agora, enquanto seguramos os nossos cacos, é o momento propício para avaliar o que realmente compensa ser reconstruído. Até que ponto vale a pena remontar exatamente a mesma rotina de antes? Entre tantas coisas que a Covid-19 nos tirou, algumas talvez devessem continuar longe de nós. 

Sobre todos os aspectos, repito, essa a pandemia foi e está sendo trágica. Mas ela vai passar, e quando passar espero que, assim como fizeram os sobreviventes da Peste Negra, consigamos nos permitir nosso próprio Renascimento.

Créditos da imagem em destaque: https://www.historicuk.com/HistoryUK/HistoryofEngland/The-Black-Death/

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